segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A Lágrima

Da série estou-de-férias-e-quero-muito-escrever, um conto que procurei explorar os sentimentos escritos.


A lágrima

Veio inesperado, a sensação que ela teve. Veio subindo do fundo de algum lugar abaixo e queimou. Passou pelas suas entranhas, percorreu sua garganta, cuidadosamente evitou suas amidalas e se instalou no céu da sua boca. Foi só ai que ela conseguir controlar: abriu e cerrou os olhos, prendeu a respiração e soltou aos poucos, tudo para que as lágrimas que vieram lá do fundo não fizesse aparição em público. Sua irmã sorria e ficava parada próximo dela. O homem que ela amava também estava parado, próximo demais dela. Ele estava lindo em seu terno bem costurado. Quanto à sua irmã, ela parecia só mais uma em branco. Fizera tanto alvoroço para escolher aquele vestido. Perguntara mil vezes se ela gostou. Parecia sempre a mesma coisa. Quando achou um vestido que sua irmã estava mais inclinada a gostar, desprendeu um grande esforço para que ela se convencesse que aquele estava bom.

O Padre começou o discurso. Ela queria esquecer quem estava ali, resolveu prestar atenção no discurso. O amor, dizia o padre, deve ser puro. Logo se arrependeu de prestar atenção no discurso do amor puro. Lembrou-se da primeira vez que falou com o homem que se tornou noivo de sua irmã. Conversaram a noite toda sobre todo o tipo de coisa. Sua irmã nunca se dera ao trabalho de conversar. Com um flerte fácil, que escapava das mãos dela como fazer, sua irmã conseguiu beijá-lo. Logo depois conseguiu que lhe pedisse em namoro.

A queimação veio de novo. Olhou para o lado e viu sua mãe chorando. Se sua mãe estava chorando, talvez ninguém desconfiasse que a irmã da noiva amava o noivo se ela chorasse um pouco só. Deixou algumas lágrimas caírem. Elas saíram depressa, querendo dar espaço para as milhares de lágrimas que ela não chorara quando sua irmã lhe contou que ficara noiva.

Os noivos disseram sim, e ela lembrou do dia em que o noivo lhe disse não. Depois de beber para comemorar sua formatura, os dois riam e gargalhavam sem motivos. Ela tinha motivo: sua irmã chegaria tarde. À luz do álcool, puxou-o e beijou com toda a vontade reprimida nos três anos passados. Ele lhe beijou com cautela, mas quando voltou a sobriedade, disse não. Esse não nunca deixaria de perseguir ela. Era a prova definitiva da negação da sua vida, e da afirmação dela mesma como traíra.

Depois de se assumir como traíra da própria irmã, a vida ficou um pouco menos difícil. Afinal, uma vez traíra, a única coisa que restara era trair. Ela traía da melhor maneira que conseguia: conversava muito com ele. Sempre tentava achar brechas na afeição dele para sua irmã, e achava muitas. Mas nunca conseguir usá-la em seu favor. Foi assim que os dois foram parar lá, todos bem vestidos e sorrindo para a plateia, que os aplaudia.

Ela já não conseguia controlar as lágrimas. Logo queria gritar, mas isso teria que esperar. A dor e a queimação tomou seu peito e sua garganta. Sua mãe não gritava, apenas chorava de alegria, por isso ela não estava autorizada a gritar. Tentou recorrer aos seus sonhos: ele lhe dizendo baixinho que ficaria sempre ao seu lado. Que amar sua irmã primeiro fora uma grande piada que durou cinco anos. Que seu sofrimento ia acabar pois ele finalmente amava ela, e somente ela. E principalmente dizendo sim sim sim para sempre sim.

Os noivos caminharam para fora da Igreja sorridentes. Ela ainda chorava, fazia caretas para conter as lagrimas, mas elas sempre venciam. Decidiu sair daquele salão muito branco. Chegou muito perto da porta, mas olhou para trás. Ele olhava para ela, com um olhar de pouca dor. As lágrimas molhavam a visão dela do seu amor. Apenas sabia que ele lhe olhava. Piscou algumas vezes, tentando ver claramente. Mas sempre olhou claramente. O amor estava nos olhos dele. E as lágrimas, nos dela.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Conto de uma Invasão Irreal

Hoje chegou mais alguns Blu-rays que comprei no correio. Quando fui atender à porta, me surgiu uma história que, depois de pensar bem, nunca contei para ninguém. Talvez porque para mim foi um tanto quanto irreal, ou porque é uma daquelas histórias que te causa vergonha mesmo não sendo culpa sua.
Um dia, de tarde, eu estava sozinha em casa. Eu devia ter bem uns 16, 17 anos. A campainha tocou e interrompeu a minha cozinha. Desliguei o fogo e fui alegremente ver quem era. Havia um homem, na casa dos quarenta talvez, encostado nas grades. Minha mãe costuma receber muitos motoboys que pedem doações para as milhões de creches e asilos por aí, por isso assumi que era mais um. Quando abri a porta, percebi que ele estava de carro. Até aí, tudo bem, existem motoboys de carro.
Eu era, fui, sou tão inocente que logo logo me aproximei da grade, já com a chave na mão para abrir o portão. Cheguei muito perto da grade, com um olhar indagador para o homem, silenciosamente perguntando de qual creche ele era e quanto eu teria que desembolsar. O homem olhou para mim, no rosto qualquer cinismo, e disse: "Sua mãe me enviou para dar uma olhada no gás. Posso entrar?"
Na mesma hora congelei e ouvi a voz da minha mãe na minha cabeça" "Não fale com estranhos. Se alguém disser que é um amigo meu e você não reconhecer, é porque é mentira. Você conhece todos os meus amigos." Ela diz isso para mim desde que eu me entendo por gente.
Naquela hora, caí na meia besteira de dizer: "Ela não está". O homem olhou para mim e começou a examinar os arredores da garagem. Comecei a bolar um plano de fuga em segundos: jogaria a chave para o mais longe possível dele, e se ele me ameaçasse com armas ou algo do tipo, pularia atrás do vaso do pé de jabuticaba da garagem.
Mas isso tudo é só a minha imaginação embebida de adrenalina. A única coisa que efetivamente fiz foi dar dois passos para trás, o suficiente para que a mão esticada dele através das grades não pudesse me pegar.
Quando respondi que a minha mãe não estava, ele ainda tentou, me tratando como criança: "Deixa eu entrar, é rapidinho" Reuni todo o olhar raivoso, ameaçador, cínico e perigoso que podia para responder: "Você vai ter que esperar ela"
Ele ainda deu uma última olhada nas janelas da minha casa e talvez tivesse olhado para mim, avaliando o que perdeu e disse qualquer coisa como "então tá" ou "depois eu volto". Observei ele ir, pensando aliviada que me livrei de uma invasão, mas que talvez alguém mais ingênua que eu não tivesse a mesma sorte.
Essa invasão foi irreal, mas tão real quanto esse conto.